Deleuze & Guatarri |
"Eclético por excelência, o pensamento pós-moderno andou cruzando, em várias posições, Marx com Freud, marxismo e psicanálise, para desmantelar algumas ficções ocidentais. Em 1972, o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Felix Guattari bagunçaram as idéias contemporâneas com um petardo chamado O Anti-Édipo. O livro metia a noção marxista de produção nos porões do inconsciente freudiano. Este deixava de ser o cenário das imagens e emoções recalcadas para virar máquina desejante, energia produtora de desejos. A idéia de máquina desejante era filha do cruzamento da sociedade capitalista (Marx/ máquina) com o inconsciente individual (Freud! desejo). Sociedade e individuo eram uma coisa só: máquinas desejantes.
Só que, entoava o Anti-Édipo, essas máquinas estavam com suas energias domesticadas, dirigidas para outros fins que não a liberdade e o prazer. No indivíduo: para ser sujeito, ter uma identidade, todo mundo passa pelo complexo de Édipo (o desejo de matar o pai e trepar com a mãe). Se a criança supera essa fase, entre os 3 e 4 anos, a educação terá sucesso em programar sua identidade: o sujeito será cidadão normal, consumidor, trepará bonitinho (pênis in vagina) com sua mulher, obedecerá os horários, etc. (Se não supera, se rejeita a programação social, a criança fica esquizofrênica). Na sociedade capitalista: dinheiro, luz elétrica, transportes, mercadorias, trabalho humano, lazer, são energias dominadas pela programação racional da produção e destinadas ao lucro. Nos dois casos há repressão, as máquinas desejantes estão com sua produção desvirtuada, sem gozo pleno. Para derrotar o sistema, e liberar o desejo em sua plenitude, a duplinha Deleuze-Guattari só vê uma saída: promover o Anti-Édipo, o esquizofrênico, a pura máquina desejante que o Complexo de Édipo, isto é, a família não programou.
Desprogramado, o esquizofrênico usa suas energias como lhe dá na telha. Não come ou come quando quer, não caga ou caga onde está, não respeita horários nem patrões, goza com todas as saliências e buracos. Mas atenção: conforme disse Guattari numa entrevista, ele não é o psicótico que está fora da realidade. Liberado em seu desejo, deixando suas energias fluírem e se conectarem com outras máquinas desejantes como mais lhe agradar, o esquizofrênico é o modelo para o revolucionário de nossos dias. Ele desmonta ponto por ponto a programação capitalista na fábrica, na família, nos serviços, no sexo, ao liberar os fluxos de energia que, correndo livremente, acoplarão e desacoplarão boca e pênis, ânus e seio, tal as máquinas.
Isso, claro, é uma utopia às avessas. Mas Deleuze e Guattari sabem que Estados, países, burocracias, empresas, partidos, sindicatos, escolas, são máquinas enormes onde as energias seguem programações repressivas e assim a única liberação possível é pela Revolução Molecular: fragmentar o Sistema, desconstruir os grandes organismos na aula, em casa, no hospício, no banco, no trânsito, na praça, até reduzi-lo às suas menores moléculas. A Revolução não virá mais da massa reunida no Partido ou no Sindicato, grandes totalidades. Ela se fará por despedaçamento, anarquia, evitando-se as unidades maiores, as normas, os centros de comando. Dai que a Revolução Molecular se bate pelo feminismo, a droga, a antieducação, a antipsiquiatria, o trabalho improdutivo. Ela não berra: “Proletários de todo o mundo, uni-vos.” Mas faz correr de boca em boca: “Morte ao Todo, viva a Partícula”.
Lyotard |
Outra fusão Marx com Freud foi tentada pelo filósofo francês Jean François Lyotard. Ele criou uma economia libidinal (libido é a energia sexual freudiana) que também visa à liberação do desejo na micropolítica do cotidiano (na cama, no hospital, no supermercado), onde quer que pinte repressão. A contribuição mais importante de Lyotard, no entanto, está no livro A Condição Pós-moderna (1979). Ali ele expõe como a tecnociência, hoje coração integrado das sociedades pós-industriais e da pós-modernidade, não procura mais, como a Ciência moderna, a Verdade. Concentrada em áreas ligadas à linguagem — comunicação, cibernética, informática, telemática — ela busca a performance, o melhor resultado.
Nestes ramos, associada ao poder econômico e político, a tecnociência não visa mais a conhecer o real, espelhando-o em números e leis, mas tende antes a acelerar informações para a indústria e os serviços produzirem novas realidades a um ritmo mais rápido e a um custo mais baixo. A tecnociência tornou-se performativa (performance = desempenho, resultado). As sucessivas gerações de computadores, com capacidade lógica e de processamento sempre maiores, não descobrem novas verdades, mas ampliam a performatividade.
Qando a imagem é a vida melhor. |
Foi assim que, após semanas processando dados, um computador permitiu ao ciclista Francesco Moser quebrar seu próprio recorde mundial, ao percorrer 51,151 km em uma hora. Técnicos em medicina, biologia, informática coletaram dados e prepararam o evento. O computador combinou as medidas coletadas até estabelecer os momentos mais favoráveis à aceleração e ao descanso, otimizando a performance do corredor. A máquina calculou melhor que o homem os momentos ideais para decisões humanas. Mas como disse uma vendedora de vibradores no Macy’s em Nova York: “Se funciona aleluia”.
Mais para cabaré do que para capela, a cena filosófica pós-moderna tem no palco a tecnociência em contradança com o niilismo. Lyotard, e outros, que desejam acelerar o niilismo, a decadência, se bate por uma ciência pós-moderna, não performativa, mas permissiva, uma ciência do instável, do contraditório, do paradoxal (tudo isso é anti-ocidental), tal como surge na teoria das catástrofes de René Thon ou na da comunicação paradoxal de Watzlawick, que permite entender melhor os esquizofrênicos. Dessa idéia estão perto Feyerabend, um cientista que avacalha a ciência em favor da liberdade humana, e o físico russo, exilado na Bélgica, Ilya Prigogine, para quem a desordem não é o caos, mas parteira de estruturas racionais e práticas (certos insetos constroem belíssimas arquiteturas juntando materiais ao acaso).
Outros querem deter a avalanche niilista. O americano Daniel Bell, sociólogo mais para a direita, só vê a saída num retorno à religião. Já Jurgen Habbermas, filósofo alemão herdeiro atual da famosa Escola de Frankfurt,e portanto um esquerdista, pensa que a saída, na era da informação, está na comunicação autêntica, recrutando em Marx e Freud armas para combater os efeitos maléficos da comunicação de massa, diluidora, anti-humana. Outros ainda, como Gilles Lipovetsky, autor do livro L’Ére du Vide (A Era do Vazio), acham o niilismo um barato, pois libera o indivíduo das velharias e alimenta seu desejo de personalização e responsabilidade por si mesmo, num mundo sem Deus nem o Diabo."
FERREIRA, Jair. O que é pós-modernismo? Coleção Primeiros Passos. SP: Editora Brasiliense, 1986. Pp 84-86. Grifos nossos.
Para complementar e entender um pouco melhor, dê uma olhada nesses verbetes:
NIILISMO (atente para o "niilismo ativo")
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