Letras Vermelhas
A Escola está a favor ou contra o conhecimento?
Faz muito tempo que me pergunto qual a verdadeira finalidade da escola. Parei de acreditar na ingênua promessa de que a escola é difusora de conhecimento, aliás, passei a perceber quão inúteis são os "conhecimentos" passados pela escola. Passei a buscar a um outro sentido para a educação escolar - desenvolver o raciocínio a criatividade e o corpo (como os gregos antigos!), por exemplo, seria mais útil.
Percebi que dizer "educação escolar" é uma ofensa ao conceito de educação, o mais correto é dizer "adestramento escolar", pois, é isso que a escola faz. Adestra.
Na escola aprendemos a respeitar os sinais. alarme soa, hora de entrar, alarme soa, hora de comer, alarme soa, hora de voltar, alarme soa, hora de ir embora. O professor fala, você concorda e respeita. Faça suas atividades, memorize informações - mesmo se não encontrar um fim prático para elas. Assassine sua força de vontade, ignore seus hormônios, sufoque sua criatividade. Sua vontade deve ser a vontade daquele que é seu superior, sempre.
E nós, terminamos a escola assim como os cães concluem seu treinamento, alguns mais, outros menos, mas, todos com a "obediência" instalada em nossas cabeças. Deixamos de ser as inúteis crianças improdutivas e passamos a ser seres produtivos. Prontos para o mercado de trabalho.
O que traz outra questão a tona:
Trabalhamos para viver ou vivemos para trabalhar?
Já nem sei mais...
Recentemente me deparei com este texto do Rubem Alves que diz muito a esse respeito de uma forma bem dinâmica:
Pinóquio
Prometi e fiquei devedor. Disse antes que era um dever de honestidade contar a estória do Pinóquio às avessas. Depois de muito pensar, concluí que honestidade é pouco. É bondade que devemos às crianças. É preciso quebrar o feitiço das estórias que se repetem... Um bonequinho de pau, tão inofensivo... Mas já se tornou hóspede da imaginação dos meninos, e vai repetindo suavemente aquelas lições que dizem que quem não vai à escola não chega a ser humano. Claro que há pessoas que se metamorfoseiam em burros, havendo mesmo algumas que alcançam a dignidade de mulas-sem-cabeça. O que é duvidoso é que o agente de tão dramática transformação seja a falta da escola. As evidências indicam a falsidade da hipótese: as crianças de carne e osso que entram, pra sair transformadas em bonecos de pau.
Assim, peço licença ao leitor acostumado ao sisudo discurso da Ciência. Quero brincar de Lewis Carroll. Entrar de mãos dadas com a Alice, espelho a dentro, onde tudo acontece às avessas. Há uma magia nas imagens invertidas. Parece que, para se ver bem o real, é necessário pôr os óculos da fantasia. E assim começa a estória às avessas...
...Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos, que se deleitava nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mundos de faz-de-conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz achatado nos vidros dos aquários. Assobiava para os perus, andava na chuva - todas estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer, e não fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo.
Não sabia que uma conspiração estava em andamento. tudo começara bem antes, quando um nome lhe fora dado. Nome do pai. Claro, confissão das intenções: que o menino sem nome e sem desejos aceitasse como seus o nome e os desejos de um outro que ele nem mesmo conhecia. Filho, extensão do pai, realização de desejos não realizados, sobrevivência do corpo, uma pitada de onipotência, uma gota de imortalidade.
"Que é que vais ser quando crescer? Médico? Diplomata? Cientista?"
E as conversas se prolongavam, temperadas com sorrisos e boas intenções, enquanto silenciosas se teciam as malhas do desejo em pai e mãe esperavam colher/acolher/encolher o menino dos desejos tão simples...
Até que chegou o dia em que lhe foi dito:
- É preciso ir para a escola. Todos os meninos vão. Para se transformarem em gente. Deixar as coisas de criança. Em cada criança brincante dorme um adulto produtivo. É preciso que o adulto produtivo devore a criança inútil.
E assim aconteceu. Há certos golpes do destino contra os quais é inútil lutar.
O menino de carne e osso aprendeu coisas curiosas: nomes de heróis, frases que teriam dito, as alturas de montes onde nunca subiria, as funduras de mares onde nunca desceria, a distância entre galáxias, o "se", partícula apassivadora, o "se", símbolo de indeterminação do sujeito, nomes de cidades de países longínquos, suas populações e riquezas, fórmulas e mais fórmulas...
Sabia que tudo aquilo deveria ter um motivo. Só que ele não entendia. O desejo permanecia selvagem. E disto eram prova aquelas notas vermelhas no boletim, testemunhas de como o menino cavalgava longe do desejo dos outros, conspiradores secretos, escondidos na monotonia dos currículos que não faziam seu corpo sorrir...
"Pra que serve tudo isso?", ele perguntava.
O pai respondia, sábio e paciente:
- Um dia você saberá. Por hora basta saber que papai sabe o que é melhor para seu filho...
O menino cresceu. E aconteceu que, em meio às suas rotinas, veio a se encontrar com dois cavalheiros bem vestidos e de fala branda, que se puseram a contar estórias de um mundo encantado sobre o qual ele nunca ouvira falar. Eles disseram que heróis em aventais brancos, cavalgando microscópios e telescópios, brandindo máquinas fantásticas e aparelhos misteriosos, em meio a líquidos mágicos que faziam viver e morrer, encastelados em templos onde as coisas visíveis ficavam invisíveis e as coisas invisíveis ficavam visíveis, e lhe disseram de prodígios de verdade, e lhe perguntaram se ele não desejava se transformar num mago, num artista... A recompensa? O poder, o conhecimento de segredos que ninguém conhece, a glória, ser olhado por todos como um ser diferente, sublime, superior. Se os seus prodígios fossem maiores que os de todos, ele poderia aparecer no palco supremo da ciência, em país distante, onde os mortais se revestem de imortalidade...
O menino grande se lembrou dos sonhos do menino pequeno. E sorriu. Finalmente, chegara o momento da sua realização. Estranho que os narizes dos respeitáveis cavalheiros tivessem crescido enquanto falavam. Mas, logo o tranquilizaram:
- É só pra te cheirar melhor, meu filho...
Começaram as transformações. Primeiro os olhos, Já não refletiam outros olhares e nem borboletas... Aprenderam a concentração, a disciplina. Depois o corpo, que desaprendeu a dança, o voo dos papagaios e o brinquedo. Era necessário dedicar-se totalmente. Os pensamentos abandonaram as fantasias e os contos de fadas. Passaram a morar no mundo das fórmulas e dos experimentos. Até o prazer da comida se satisfez com os sanduíches rápidos do almoço, e na cama o corpo se esqueceu do corpo...
E aprendeu coisas preciosas. Que o corpo do cientista é neutro. Que ele não se comove por considerações de valor ou prazer. Que está acima da vida e da morte (isto é coisa de políticos, militares e clérigos), em dedicação total ao saber. Bastava-lhe ser um devotado servidor do progresso da Ciência.
Mas, tantos sacrifícios acabaram por receber merecida recompensa. A sorte soprou, favorável, e de se corpo diferente surgiu uma nova magia, e o palco da imortalidade lhe foi aberto. Lá, perante todos, compreendeu que valera a pena. Duas lágrimas lhe rolaram pela face.
Já não era o menino de outrora, carne e osso. Crescera. Estava diferente. Os aplausos de madeira enchiam a sala. Era a glória. E foi então que o milagre aconteceu. O recinto se encheu de suave luminosidade, e a Mosca Azul, que até então só habitara os seus sonhos, veio de longe e roçou seu rosto com suas asas. E a grande transformação aconteceu. Era um boneco de madeira, inteligência pura, sem coração. E os milhares de bonecos iguais, de pé, não paravam de tamanquear os seus aplausos ao novo irmão, enquanto gritavam seu nome:
"Pinóquio, Pinóquio, Pinóquio..."
Conto retirado do livro "Estórias de Quem Gosta de Ensinar" de Rubem Alves (Reproduzido na integra com permissão verbal do autor, concedida em 19/10/2011 - Indaiatuba).
Mudando os Paradigmas da Educação
Sobre como a escola limita a capacidade criativa das crianças em prol do adestramento para o mercado de trabalho, recomendo este vídeo também:
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Considerações Finais
O que nós, adultos, frustrados, problemáticos, temos para ensinar às crianças são os mesmos modos de acorrentamento à uma sociedade que nos faz mal? Não seria melhor ensinarmos a elas, simplesmente, o que faz feliz? Hoje, hiperatividade é uma doença tratada com calmantes, achar as coisas (que são realmente mais interessantes) mais interessantes do que a aula é "desvio de atenção".
O problema está no sistema doentio onde as pessoas apostam a vida e perdem, então resolvem apostar a vida do filho achando que o resultado será diferente. E qual a solução? Talvez a solução seja simplesmente Viver e Deixar Viver, talvez a solução seja começar a perguntar "eu preciso mesmo disso?".
Salam! (Paz)
A mudança começa aos poucos. Já começou por aqui.
Salam! (Paz)
A mudança começa aos poucos. Já começou por aqui.
"We don't need no education
ResponderExcluirWe don't need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers leave us kids alone
Hey! Teachers! Leave us kids alone!
All in all it's just another brick in the wall.
All in all you're just another brick in the wall."
Escolas são prisões, físicas e abstratas.
Tornamos, e estamos tornando, nossas vidas artificiais, em todos os sentidos. Damos valor a coisas totalmente inúteis e nos esquecemos de viver. O "formato de educação" atual é um exemplo disso. Não compartilhamos conhecimento, apenas reproduzimos e jogamos informações. Estamos nos enganando e enganando aos outros, vivemos uma farsa escancarada.
Fico pensando em que transformamos o mundo e, na maioria das vezes, não vejo saída. Me sinto fraca para lutar, mas, ao mesmo tempo, penso como o Buriti: "a mudança começa aos poucos, já começou aqui".
A luta é diária e, felizmente, não estamos sozinhos. A mudança começa em nós.
é interessante repensar as historias classicas e os filmes infantis, né? tanta coisa a gnt percebe depois de um tempo... é difícil fugir desse bombardeio, o ideal é lidar com ele, pra conseguir romper!
ResponderExcluirEste mês dei aula sobre Revolução Industrial e Linhas de Produção. Lendo esse post, eu não consigo pensar em outra coisa a não ser o filme Tempos Modernos, do Chaplin. A escola é uma indústria, onde a produção é fragmentada de tal forma que as únicas pessoas que possuem conhecimento do produto final são os patrões. E não nos enganemos, os patrões não são os alunos, os professores, as inspetoras ou os diretores, os patrões são as pessoas que organizam o sistema educacional par funcionar de determinada forma... E ele funciona, mas apenas para os patrões. A escola hoje é o maior modelo de reprodução e introjeção de uma forma de agir e pensar nos dias de hoje: a ação disciplinada, regrada, seja por valores (também postos em nossas cabeças), quando por comportamentos que sigam um padrão.
ResponderExcluirE o pior, funciona de tal forma, que sabemos muito bem que os estudantes se perguntam "pq tenho que aprender isso?", mas no fim acabam acatando a hipotese de que alguém muito "melhor" que eles e, portanto, mais apto a decidir por eles, colocou isso, então deve ter alguma importância. Mas será que essa acomodação sobre o questionamento cessa completamente?
Pegando um pouco do que a Bia disse, eu não consigo não associar isso aos Saltimbancos, mais especificamente à Galinha, ou então ao video "A escola Gerando Traumas", quando o Bill fala sobre os alunos como vacas
http://www.youtube.com/watch?v=E1eFnDI7bOA
Jazz: O Pink Floyd foi muito bem lembrado! Não sei como não utilizei na minha postagem! Obrigado por complementar! Como você disse, a escola nos ensina a reproduzir, e pior que isso, ensina a reproduzir sem nem ao menos ensinar a aplicação daquilo que nos obriga a reduzir (a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da porra da hipotenusa, e por aí vai)
ResponderExcluirSó existe força se continuarmos unidos.
Bianca, não sei se conhece ou não o trabalho do Rubem Alves, ele trabalho muito com "revisões de fábulas" e até mesmo com criação de fábulas para novas metáforas críticas das situações da contemporaneidade. Obrigado pelo comentário.
É Gabriel! Os sinais são os mesmos, ao invés de Ponto a Chamada, a diferença é o que os alunos, no processo fabril são um misto de produto e operário!. Obrigado por comentar!
E aí vc entra na facul e percebe que lá é um lugar de adestramento pro mercado de trabalho e aprende noções básicas e avançadas de passar seu amigo pra trás, sendo patrão, e não empregado.
ResponderExcluirGostei bastante do texto do Rubens Alves. Bela escrita e metafora.
ResponderExcluirÉ sempre bom ressaltar ou lembrar o nosso papel nisso tudo. Sacudidas sempre são necessárias antes que nos acomodemos com a situação.
Você fez isso com esse texto. Vou pensar a respeito.
(desculpe o comentário sem muita critica)
Natureza Artificial, talvez a única diferença da faculdade é que ela nos concede um mínimo de autonomia para sacanearmos os nossos superiores e conquistar suas posições, talvez também pisar nos que estão abaixo na hierarquia e tudo isso com requintes de criatividade e crueldade.
ResponderExcluirAna, obrigado pelo comentário, sobre as sacudidas, tem um poema de um russo, que eu não lembro o nome, só lembro que começa com M, que é mais ou menos assim: "Se você não se movimenta não sente as correntes que o aprisionam". Talvez seja esse o objetivo geral das Letras Vermelhas, manter-me incomodado e tentar incomodar outras pessoas.