quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Esse é o mundo que queremos?


Entrevista com o sociólogo Zygmunt Bauman, autor do famoso “O mal-estar da pós-modernidade”.
Como amar em um mundo assustador?
Há anos o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, professor emérito da Universidade de Leeds e de Varsóvia, dedica-se a retratar as desastrosas consequências sociais de uma modernização que privilegia apenas uma minoria. Prestes a completar 80 anos, o autor dos best-sellers “O mal-estar da pós-modernidade” e “Amor líquido” está mais activo do que nunca: dois novos livros estão chegando ao Brasil, ambos pela Jorge Zahar Editor. Em “Vidas desperdiçadas”, Bauman faz um prognóstico assustador: o crescimento incontrolável do “lixo humano”, pessoas descartáveis ou “refugadas”, como prefere que não puderam ser aproveitadas e reconhecidas numa sociedade cada vez mais seletiva. O outro lançamento é “Identidade”, uma entrevista que concedeu ao jornalista italiano Benedetto Vecchi, em que reforça seus conceitos sobre a crise de identidade imposta pela modernização.
Em entrevista exclusiva ao jornal O Globo, 5-11-05, Bauman analisa a fluidez dos relacionamentos amorosos, compara a vida em sociedade ao “Big Brother”, critica o combate militar ao terrorismo, comenta o “jeitinho brasileiro” e nega o rótulo de pessimista: “Acredito fortemente que um mundo alternativo seja possível”, diz ele.
  • No seu livro “Amor líquido” é um sucesso comercial no Brasil. Na sua opinião, por que as pessoas têm se interessado tanto pelo assunto? Por que a idéia de durabilidade das relações amorosas nos assusta tanto?
ZYGMUNT BAUMAN: As relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais penosos com que precisamos nos confrontar e solucionar. Nestes tempos líquidos, precisamos da ajuda de um companheiro leal, “até que a morte nos separe”, mais do que em qualquer outra época. Mas qualquer coisa “até a morte” nos desanima e assusta: não se pode permitir que coisas ou pessoas sejam impedimentos ou nos obriguem a diminuir o ritmo de vida. Compromissos de tempo indeterminado ameaçam frustrar e atrapalhar as mudanças que um futuro desconhecido e imprevisível pode exigir. Mas, sem esse compromisso e a disposição para o auto-sacrifício em prol do parceiro, não se pode pensar no amor verdadeiro. De facto, é uma contradição sem solução. A esperança ainda que falsa é que a quantidade poderia compensar a qualidade: se cada relacionamento é frágil, então vamos ter tantos relacionamentos quanto forem possíveis.
  • O senhor está casado com a mesma mulher há 56 anos (a também socióloga Janina). Há segredo para uma união duradoura em tempos de “amor líquido”, em que os parceiros são descartados de acordo com a sua funcionalidade?
BAUMAN: Quanto mais fácil se torna terminar relacionamentos, menos motivação existe para se negociar ou buscar vencer as dificuldades que qualquer parceria sofre, ocasionalmente. Afinal, quando os parceiros se encontram, cada um traz a sua biografia, que precisa ser conciliada, e não se pode pensar em conciliação sem fazer concessões e auto-sacrifício. Eu e Janina, provavelmente, consideramos isso mais aceitável do que a perspectiva de ficarmos separados um do outro. No fim das contas é uma questão de escolha, do valor que se dá a estar junto com o parceiro e da força do amor, que torna o auto-sacrifício em prol do amado algo natural, doce e prazeroso, em vez de amargo e desanimador.
  • A sociedade fragmentada que o senhor apresenta em “Vidas desperdiçadas” não estimula a individualização e o sentimento de medo ao estranho que foram apresentados em “Amor líquido”?
BAUMAN: Claro. Nos comportamos exactamente como o tipo de sociedade apresentada nos “reality shows”, como por exemplo, o “Big Brother”. A questão da “realidade”, como insinuam os programas desse tipo, é que não é preciso fazer algo para “merecer” a exclusão. O que o “reality show” apresenta é o destino e a exclusão é o destino inevitável. A questão não é “se”, mas “quem” e “quando”. As pessoas não são excluídas porque são más, mas porque outros demonstram ser mais espertos na arte de passar por cima dos outros. Todos são avisados de que não têm capacidade de permanecer porque existe uma cota de exclusão que precisa ser preenchida. É exactamente essa familiaridade que desperta o interesse em massa por esse tipo de programa. Muitos de nós adoptamos e tentamos seguir a mensagem contida no lema do programa “Survivor”: “não confie em ninguém!” Um slogan como esse não prediz muito bem o futuro das amizades e parcerias humanas.
  • Em “Vidas desperdiçadas” o senhor menciona a questão criada por “imigrantes” em busca de um Estado que os proteja e lhes dê sobrevivência. De que modo os recentes atentados terroristas nos EUA e Europa são uma conseqüência dessa “marginalização” de seres humanos?
BAUMAN: A globalização negativa cumpriu sua tarefa. As fronteiras que já foram abertas para a livre circulação de capital, mercadorias e informações não podem ser fechadas para os humanos. Podemos prever que quando e se os atentados terroristas desaparecerem, isso irá acontecer apesar da violência brutal das tropas. O terrorismo só vai diminuir e desaparecer se as raízes sociopolíticas forem eliminadas. E isso vai exigir muito mais tempo e esforço do que uma série de operações militares punitivas. A guerra real e capaz de se vencer contra o terrorismo não é conduzida quando as cidades e vilarejos arruinados do Iraque ou do Afeganistão são devastados, mas quando as dívidas dos países pobres são canceladas, os mercados ricos são abertos à produção dos países pobres e quando as 115 milhões de crianças actualmente sem acesso a nenhuma escola são incluídas em programas de educação.
  • O que o senhor acha da afirmação de alguns acadêmicos que a globalização acabou e que o momento que vivemos agora é de vácuo pós-globalização?
BAUMAN: Não sei o que esses “acadêmicos” têm em mente. Até agora, a nossa globalização é totalmente negativa. Todas as sociedades já estão abertas. Não há mais abrigos seguros para se esconder. A “globalização negativa” cumpriu seu papel, mas sua contrapartida “positiva” nem começou a actuar. Esta é a tarefa mais importante em que o nosso século terá que se empenhar. Espero que um dia seja cumprida. É questão de vida ou morte da Humanidade!
  • O que será preciso acontecer para que nossa sociedade se dê conta da armadilha que caiu em busca da suposta “modernidade”?
BAUMAN: A civilização moderna não tem tempo nem vontade de reflectir sobre a escuridão no fim do túnel. Ela está ocupada resolvendo sucessivos problemas, e principalmente os trazidos pela última ou penúltima tentativa de resolvê-los. O modo com que lidamos com desastres segue a regra de trancar a porta do estábulo quando o cavalo já fugiu e provavelmente já correu para bem longe para ser pego. E o espírito inquieto da modernização garante que haja um número crescente de portas de estábulos que precisam ser trancadas. Ocasiões chocantes como o 11 de Setembro, o tsunami na Ásia, (o furacão) Katrina, deveriam ter servido para nos acordar e fazer agir com sobriedade. Chamar o que aconteceu em Nova Orleans e redondezas de “colapso da lei e ordem” é simplista. Lei e ordem desapareceram como se nunca tivessem existido.
  • O senhor aponta uma “crise aguda da indústria de remoção de refugo humano”. É possível criar mecanismos de inclusão dos seres humanos “excessivos” e “redundantes”? A modernização implica, necessariamente, uma “lixeira humana”?
BAUMAN: Esse excesso de população precisa ser ajudado a retornar ao convívio social assim que possível. Eles são o “exército reserva da mão-de-obra” e lhes deve ser permitido que voltem à vida activa na primeira oportunidade. Os “redundantes” são obrigados a conviver com o resto da sociedade, o que é legitimado pela capacidade de trabalho e consumo. Em vez de permanecer, como era visto anteriormente, como um problema de uma parte separada da população, a designação de “lixo” torna-se a perspectiva potencial de todos. Há partes do mundo que se confrontaram com o antes desconhecido fenômeno de “população sobrando”. Os países subdesenvolvidos não se disporiam, como no passado, a receber as sobras de outros povos e nem podem ser forçados a aceitar isso.
  • Países como Brasil, Índia e China são constantemente apontados como estratégicos para o século XXI. Ao mesmo tempo, são três países com grande número de “lixo humano”, com alto índice de desemprego. Isso não é uma contradição?
BAUMAN: Certamente. Isso fica ainda pior quando os gigantes do século XXI, China, Índia, Brasil, entram no “processo de modernização”. O número de “pessoas desnecessárias” crescerá. E aí há o grande problema que mais cedo ou mais tarde teremos que enfrentar: capacitar ou não China, Índia e Brasil a imitar o modelo de “bem-estar” adotado nos Estados Unidos em uma época em que “modernização” ainda era um privilégio de poucos? Para dar vazão, seriam necessários três planetas, mas nós só temos um para dividir.
  • Um dos mais importantes compositores brasileiros, Chico Buarque de Holanda, afirmou que “uma nação grande e forte é perigosa, mas que uma nação grande, forte e ignorante é ainda mais perigosa”. Ter uma nação grande, forte e ignorante no comando do mundo como parecem ser os Estados Unidos da Era Bush não pode acirrar ainda mais o “refugo” dos seres humanos?
BAUMAN: Lamento não conhecer Chico Buarque: ele toca no cerne da questão. Até onde vai a situação de nosso planeta com um único superpoder, confundido e subjugado pela ilusão de sua repentina ilimitada liberdade? A elevação súbita dos Estados Unidos à posição de superpotência absoluta e uma incontestada hegemonia mundial pegou líderes políticos americanos e formadores de opinião desprevenidos. É muito cedo para declarar a natureza deste novo império e generalizar seu impacto no planeta. Seu comportamento é, possivelmente, o fator mais importante da incerteza definida como “Nova Desordem Mundial”. Um império estabelecido pela guerra tem que se manter por guerras. Acabamos de ver isso no Iraque, apesar de todos saberem que era óbvio que bombardear e invadir o país não aniquilaria o terrorismo.
  • No Brasil, temos uma expressão muito popular, “jeitinho brasileiro”, que representa a capacidade do povo de superar adversidades, sejam elas pequenos problemas do cotidiano ou não. O senhor acredita que há nações com seres “redundantes” que saibam sobreviver melhor do que outros?
BAUMAN: O que vocês chamam de “jeitinho brasileiro” é a maneira que a modernização nos obrigou a reagir. Um dos resultados cruciais da modernização é a dependência dos processos da vida humana pelos “jeitinhos”. Isso implica o outro lado da mesma moeda: a vulnerabilidade crescente dos legítimos modos instruídos de viver.
  • Aos 80 anos, sua produção intelectual ainda é grande. O que o motiva a continuar escrevendo?
BAUMAN: Pierre Bourdieu ressaltou que o número de personalidades do cenário político que podem compreender e articular expectativas e demandas está encolhendo. Precisamos aumentá-lo, e isso só pode ser feito apresentando problemas e necessidades. O próximo século pode ser o da catástrofe final ou um período no qual um novo acordo entre os intelectuais e as pessoas que representam a Humanidade seja negociado e trazido à tona. Vamos esperar que a escolha entre estes dois futuros ainda seja nossa.
  • Todas suas obras apresentam um cenário bastante pessimista do mundo. Temos razão para acreditar em dias melhores?
BAUMAN: Rejeito enfaticamente essa afirmação. Optimistas são pessoas que insistem que o mundo que temos é o melhor possível; os pessimistas são os que suspeitam que os optimistas podem ter razão. Portanto eu não sou nem optimista nem pessimista, porque acredito fortemente que outro mundo, alternativo e quem sabe melhor, seja possível. Acredito que os seres humanos sejam capazes de tornar real essa possibilidade.
Texto retirado de: http://dissidentex.wordpress.com/2007/12/20/zygmunt-bauman-globalizacao-modernidade-sociedade-fragmentada/

Somos bombardeados o tempo o todo por essa tal pós-modernidade...
Arte urbana de Alexandre Orion

...não tornemos de nossas vidas apenas o reflexo de nossa existência.

6 comentários:

  1. é... realmente estamos numa época em que tudo se torna líquido, qualquer tipo de relação. e o pior é q as relações são o primeiro passo pras organizações e consequentemente pras mudanças. ja q ninguém muda nada sozinho. e junto com a fragilidade das relações sociais(nao desmerecendo as trocas frequentes de casais, pq isso nao vejo de fato como um problema de maneira concreta, é td mto relativo) está a fragilidade da relação consigo mesmo, ou seja, das reflexões, agravando ainda mais o descaso com o complexo social e com a categoria humana no sentido genérico...

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  2. bom, vou aproveitar pra fazer um marketing... pra quem curte o bauman, nao é exatamente o foco, mas levei o amor líquido pra ser discutido e acrescentado na peça "Eu te amo não diz tudo", que entrará em cartaz mês que vem no Sesi Franca. ;)

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  3. Poutz, se tomarmos como base a ideologia vigente, do capital, a integração deste "lixo humano" é interessante? Não é justamente essa reserva de seres humanos que faz com que aceitemos salários baixos? Não é o medo do desemprego, de entrarmos para o grupo de "lixos humanos" que nos faz trabalhar em condições piores?

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  4. Globalização...
    É natural do ser humana
    A busca pelo novo
    E a união,
    O ser humano é um ser social.
    Como disse o entrevistado
    Estamos numa fase negativa da globalização.
    "fundimos" nosso sistema econômico, mercadológico, financeiro.
    A fase positiva, com muita dor, muito custo, muito sofrimento, virá.
    Então descobriremos que nós, seres humanos,
    apesar das diferenças culturais, étnicas, históricas, climáticas, dentre outras estamos todos no mesmo mundo.
    E todos somos seres humanos,
    Dignos de amor, respeito e oportunidade.

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  5. Isso me lembra uma música:

    Globalização é a nova onda
    O império do capital em ação
    Fazendo sua rotineira ronda
    No gueto não há nada de novo
    Além do sufoco que nunca é pouco
    Além do medo e do desemprego, da violência e da impaciência
    De quem partiu para o desespero numa ida sem volta
    Além da revolta de quem vive as voltas
    Com a exploração e a humilhação de um sistema impiedoso
    Nada de novo
    Além da pobreza e da tristeza de quem se sente traído e esquecido
    Ao ver os filhos subnutridos sem educação
    Crescendo ao lado de esgotos, banidos a contragosto pela sociedade
    Declarados bandidos sem identidade
    Que serão reprimidos em sumária execução
    Sem nenhuma apelação
    Não há nada de novo entre a terra e o céu
    Nada de novo
    Senão o velho dragão e seu tenebroso véu de destruição e fogo
    Sugando sangue do povo,
    De geração em geração
    Especulando pelo mundo todo
    É só o velho sistema do dragão
    Não, não há nenhuma ilusão, ilusão
    Só haverá mais tribulação, tribulação
    Os dirigentes do sistema impõem seu lema:
    Livre mercado, mundo educado para consumir e existir sem questionar
    Não pensam em diminuir ou domar a voracidade
    E a sacanagem do capitalismo selvagem
    Com seus tentáculos multinacionais querem mais, e mais, e mais...
    Lucros abusivos
    Grandes executivos são seus abastados serviçais
    Não se importam com a fome, com os direitos do homem
    Querem abocanhar o globo, dividindo em poucos o bolo
    Deixando migalhas pro resto da gentalha, em seus muitos planos
    Não veem seres humanos e os seus valores, só milhões e milhões de consumidores
    São tão otimistas em suas estatísticas e previsões
    Falam em crescimento, em desenvolvimento por muitas e muitas gerações
    Não há nada de novo entre a terra e o céu
    Nada de novo
    Senão o velho dragão e seu tenebroso véu de destruição e fogo
    Sugando sangue do povo,
    De geração em geração
    Especulando pelo mundo todo
    É só o velho sistema do dragão
    Não, não há nenhuma ilusão, ilusão
    Só haverá mais tribulação, tribulação
    Não sentem o momento crítico, talvez apocalíptico
    Os tigres asiáticos são um exemplo típico,
    Agora mais parecem gatinhos raquíticos e asmáticos
    Se o sistema quebrar será questão de tempo
    Até chegar o racionamento e o desabastecimento
    Que sinistra situação!
    O globo inchado e devastado com a superpopulação
    Tempos de barbárie então virão, tempos de êxodos e dispersão
    A água pode virar ouro
    O rango um rico tesouro
    Globalização é uma falsa noção do que seria a integração,
    Com todo respeito a integridade e a dignidade de cada nação
    É a lei infeliz do grande capital,
    O poder da grana internacional que faz de cada país apenas mais um seu quintal
    É o poder do dinheiro regendo o mundo inteiro
    Ricos cada vez mais ricos e metidos
    Pobres cada vez mais pobres e falidos
    Globalização, o delírio do dragão!

    Globalização - tribo de Jah

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  6. [tio.taz] Não sei muito sobre o Bauman. Li alguma coisa, mas não avancei muito. Tenho uma ideia positiva dele... mas preciso estudar mais. Quanto à pós-modernidad, acho que é algo que tem aspectos bons, mas que precisa de uma boa dose de existencialismo para combater a atomização e o embasbacamento do espetáculo...
    Essa postagem é muito boa! parabéns a quem publicou e aos comentadores! dahora mesmo.

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